domingo, 21 de abril de 2024

Quarenta dias de recuperação

Por Jânsen Leiros Jr.

 “... mas recebereis poder, ao descer sobre vós o Espírito Santo, e sereis minhas testemunhas tanto em Jerusalém como em toda a Judeia e Samaria e até aos confins da terra.”  

Atos 1:8 - ARA

Estação Ressurreição

Como dissemos na introdução, entraremos nesta marcha com o trem em movimento. Anteriormente utilizamos a figura do bonde, mas penso que o trem é mais simpático e afetivo para nós brasileiros. E teremos que correr, pois esse trem apenas passará pela estação. Ele está em movimento há uns trinta e poucos anos, aproximadamente. Ao longo desses primeiros anos, o trem foi pilotado por Jesus. Ele nasceu, se escondeu no Egito, cresceu em Nazaré, reapareceu na adolescência, foi batizado por João, anunciou as boas novas de salvação, foi morto na cruz e ressuscitou ao terceiro dia. Tudo de acordo com as Escrituras, que há muito vinha assentando os trilhos por onde passaria essa composição. A partir da ressurreição, no entanto, Jesus inicia uma espécie de transição da condução desse trem; claro, isso tudo é uma simples metáfora. Mas me refiro apenas ao trem.

Nos quarenta dias que sucedem a ressurreição do Senhor, ainda que o registrado nos Evangelhos e na introdução do livro de Atos seja insuficiente para uma afirmação categórica, parece que Jesus realiza uma espécie de recuperação com seus alunos, como se tais tivessem ficado pouco abaixo da média necessária para passar de ano direto. Por quarenta dias, ele realiza aparições aos discípulos, como que os lembrando de tudo o que lhes ensinara, afirmando e reafirmando com sua presença que tudo aquilo que por três anos transmitiu a eles, não somente era verdade, como plenamente digno de ser repassado ao mundo.

Estes dias, portanto, representam um período de revisão do que ouviram nos anos de caminhada com Jesus, preparando-os para uma transição crucial na história do Cristianismo. Neles, eventos significativos pavimentaram a trajetória dos primeiros discípulos e lançaram os fundamentos para a propagação do evangelho. Durante esse tempo, os discípulos testemunharam não apenas o Senhor ressurreto, mas também receberam instruções e comissões específicas para continuar sua missão após sua partida iminente. Além disso, a ascensão foi um momento de grande importância teológica e escatológica, que preparou o caminho para o derramamento do Espírito Santo, o início da Igreja e de sua expansão. Mas sobre isso falaremos mais à frente. Não sei se notaram, mas já estamos marchando.

Aparições, fatos e significados

Olhando especificamente para esse pouco mais de um mês entre o extraordinário evento da ressurreição e a ascensão de Jesus, podemos observar pertinências relevantes nos fatos relatados nos Evangelhos e no livro de Atos, que os tornam muito mais importantes como conteúdos teológicos, do que meras narrativas históricas. Desde a descoberta do túmulo vazio por Maria Madalena e outras mulheres até às aparições seguintes do Senhor ressuscitado, os significados saltam dos fatos, sem qualquer necessidade de explicação pontual por parte de seus narradores. O que de certa forma nos obriga a comentar tal característica de forma isolada, ainda que não seja isenta de participação no exercício de nossa marcha aqui.

Não é segredo para ninguém que, por aqueles tempos em que a história dos Evangelhos se insere, ler e escrever era uma habilidade para poucos. Logo, e prestem bem atenção nisso, os relatos eram registrados, bem como o foi todo o Antigo Testamento, para serem lidos por alguns e ouvidos por todos. Ou seja, para surpresa de muitos, a Bíblia, de ponta a ponta, foi um conteúdo escrito para ser ouvido. E isso é muito mais do que um mero paradoxo ou jogo de palavras, porque tem total pertinência com a tensão direta entre o que é lido e o que é compreendido.

A realidade do índice de alfabetização das pessoas que viviam naqueles tempos, portanto, por si só deixa claro que, sem qualquer necessidade de explicação, porque conteúdo narrativo e não argumentativo, o que era ouvido da boca de quem lia era plenamente entendido por sua audiência. Claro, poderia até não ser profundamente compreendido nas entrelinhas, de imediato, mas todo o relato precisava fazer sentido e efetivamente fazia, porque ambientado numa mesma cultura vivenciada, tanto pelo escritor quanto por seus leitores e ouvintes. Não havia, portanto, código subliminar, charadas escondidas, nem pegadinhas semânticas. Até porque o texto bíblico não é um caça-palavras ou um jogo de palavras cruzadas, como pretendem alguns, que insistem em tentar desvendar supostos enigmas escondidos no texto sagrado.

Isso explicado, podemos voltar ao primeiro dia desse período de quarentena, em que a primeira aparição acontece a Maria Madalena, fato que poderíamos considerar sem qualquer importância para uma afirmação legal de que Jesus, como havia previsto, efetivamente ressuscitou. E por que? Porque, de novo ambientando os fatos para a realidade da época em que acontecem, o testemunho de uma mulher, naquela sociedade extremamente machista, não servia como atestado de verdade ou fé pública.

Ou seja, uma afirmação de Maria Madalena não podia denotar fato comprovado e verídico, o que trazido para a realidade de nossos dias, não poderia ser considerado prova por improbidade da fonte. Ou se preferirem, seria um fato não crível, por falta de prova científica. E eu aproveito para dizer: Ainda bem. Porque há um componente extremamente necessário e intrínseco a tudo o que envolve fé; a impossibilidade da prova. O que deixa para a fé, todo o exercício de sustentação da convicção que nos faz crer no improvável. E a marcha da Igreja não poderia ter seu primeiro passo firmado senão em fé; porque o justo, o justificado, viverá pela fé.

Quando alguém pergunta, por exemplo, “quanto é dois mais dois”, e um outro alguém responde “quatro”, aquele que ouve a resposta não precisa crer que a resposta está certa. Ele apenas aceita ou constata, uma vez que “dois mais dois” sempre foi, é e será “quatro”; uma verdade passível de comprovação, porque se “quatro menos dois é igual a dois”, logo, “dois mais dois é igual a quatro”. Uma questão típica de ciência exata.

Quando, porém, uma criança que colocada sobre um lugar alto, pergunta para seu pai “posso pular?” e esse pai diz “pode” e abre os braços para recebe-la, não há qualquer equação exata que leve a criança a concluir, constatar, ou mesmo produzir prova cabal para si mesma de que seu pai a irá segurar, garantindo que ela não se machuque. Em lugar de qualquer prova, essa criança acredita em seu pai e pronto. Sua confiança não está na comprovação exata de qualquer cálculo matemático que realize antes do salto. Ela confia no pai. Tem fé nele. Sabe que o pai a ama, e então salta. Apenas se lança, sem medo ou receio. Convicta de que será amparada. Sua confiança está no pai, e não no que ela pode racionalizar e concluir sobre seu salto.

Ora, a ressurreição também não poderia, não pôde e não pode ser provada cientificamente. Nem naqueles tempos e nem mesmo em nossos dias. O que, ato contínuo, nos torna efetivos participantes dessa marcha. Pois somos testemunhas de tão grande salvação, porque o Jesus ressurreto vive! E como é que puderam no passado e que podemos hoje, afirmar isso como verdade? Porque seu Espírito habita em nós. E, de novo, não há nada de científico nisso. Nada provável. Apenas convicção em fé porque intimamente experimentado. E isso é muito e isso é tudo.

Quem precisa de provas?

Pode ser que alguém, a essa altura, questione: mas Jesus nesses quarenta dias após a ressurreição não apareceu a outros discípulos, e até mesmo a Tomé, que pediu-lhe para ver as marcas de suas mãos e até pôde tocar em seu lado perfurado pela lança ainda na cruz? Sim, claro. Mas lembrem-se de que Lázaro também foi ressuscitado. E nem por isso se fez crer com o messias filho de Deus. Sua ressurreição como fato era incontestável. O texto faz questão de relatar que todos ao redor do túmulo, inclusive oficiais religiosos, testemunhavam sua morte há alguns dias, somado ao fato de que já cheirava mal.

Ora, se tanto Lázaro quanto Jesus tiveram a ressurreição como fato comprovado, no mínimo por testemunho de circunstantes, e já não falamos mais apenas do testemunho de Maria Madalena, qual é a diferença entre ambas as ressurreições, que faz uma ser fato comprovado, sem necessidade de sustento da fé, e a outra, a do Jesus que ressuscitou Lázaro, ser uma questão de fé? É que as aparições de Jesus ao longo dos quarenta dias são comprovações do cumprimento da promessa de sua própria ressurreição e da vida eterna que por Ele haveríamos de herdar. Não eram prova de um fato ocorrido ao terceiro dia após sua morte, mas de que Jesus era efetivamente o Messias prometido, o Filho de Deus encarnado, o Cordeiro imolado por nossos pecados e o Senhor da vida. E por isso Tomé diz: meu Senhor e meu Deus. Ou seja, ao aparecer aos discípulos naqueles quarenta dias, Jesus não prova pura e simplesmente sua ressurreição, mas antes reafirma definitivamente aos seus discípulos, o seu Messianismo; Jesus, o Cristo de Deus. A marcha da igreja é uma marcha de fé. Que testemunha o que pela fé acredita.

Pode ser que o exercício empreendido até aqui tenha sido bem puxado. Reconheço que meus miolos também fritaram durante a imersão nos textos bíblicos e nas referências teológicas e históricas que utilizamos no aprofundamento desse período inicial de nossos estudos. Mas também entendo que começamos do jeito que eu mais queria; tirar todos da zona de conforto. Talvez tenha sido necessário ler uma, duas ou até três vezes o que afirmamos nos parágrafos anteriores. Não esmoreça no caminho, porque valerá muito à pena seguirmos em marcha.

Concluídas as instruções e terminado o período de recuperação, Jesus levou seus discípulos ao Monte das Oliveiras e os abençoou antes de ascender ao céu diante de seus olhos. Não receberam diploma, mas lhes estava prometida a coroa da vida. A transição de comando estava completada. A partir de agora sua Igreja marcharia por conta própria. Empoderada sim, pelo Espírito Santo, mas firmada na fé no Cristo, o Salvador do mundo. Seu Senhor e seu Deus.

Mas lembra que antecipamos que há relevâncias teológicas nas aparições de Jesus nos quarenta dias, bem como na sua ascensão? Muito bem, falaremos disso no capítulo seguinte. Nem tirem as botas dos pés. Logo retomaremos a marcha.

quinta-feira, 29 de junho de 2023

Colocando-nos em marcha

Por Jânsen Leiros Jr.

Revisado e ampliado em 11/04/2024

 

“mas recebereis poder, ao descer sobre vós o Espírito Santo, e sereis minhas testemunhas tanto em Jerusalém como em toda a Judeia e Samaria e até aos confins da terra.”  

Atos 1:8 - ARA

 Este primeiro texto introdutório à série Exercícios Espirituais – Em Marcha[1], em que estudaremos os primeiros anos da Igreja através do livro de Atos dos Apóstolos e cartas do Novo Testamento, poderia ser intitulado "Razões para Sair da Inércia". Confesso que demorei a decidir. A verdade, porém, é que um título assim talvez sugerisse que ainda estamos inertes, esperando que tais razões nos tirem dessa condição ou de alguma zona de conforto. Neste caso, eu estaria sendo injusto não só com aqueles que marcharam pelos últimos vintes séculos, bem como com os que têm marchado semanalmente ao meu lado, explorando mais profundamente tudo o que Deus revelou e registrou em Sua Palavra, e que tem sido confirmado ao longo da história da humanidade e em nossas vidas também.

Acontece que a dinâmica do mundo e o propósito de nossa existência não nos espera decidir qual é o melhor momento[2], ou quais conveniências podem nos motivar; falo aos nascidos de novo. Nossa marcha é como uma esteira em movimento, e devemos entrar nela andando. Isso significa que escolhas e decisões também são tomadas em movimento, mesmo que no início não saibamos exatamente para onde estamos indo. Até porque o Espírito sopra onde quer[3].

        Mas por que marchar e não apenas caminhar? Ora, quem marcha tem um fim em mente, um objetivo claro, enquanto quem apenas caminha pode fazê-lo sem destino, ao seu tempo e ao sabor da brisa. Por isso, "Colocando-nos em Marcha" pareceu-me mais adequado, uma vez que o vento que nos impulsiona a esta marcha objetiva e resoluta estão em pleno movimento há mais de dois milênios, e seguirão impulsionando a Igreja, conosco ou apesar de nós.

Nossa jornada começará hoje, com o propósito de mergulharmos nos fatos e acontecimentos que envolveram a Igreja no primeiro século. Marcharemos com os apóstolos e discípulos de Jesus, buscando entender seus pensamentos teológicos através de suas experiências registradas nas páginas do Novo Testamento. Será uma jornada desafiadora mas empolgante. Trabalhosa mas muito prazerosa. Exigindo de nós todo empenho e entrega incondicional.

Como sempre fazemos, marcharemos dos fatos para os comentários, das teses para os testes, e dos propósitos para os argumentos, na busca de trilharmos os mesmos passos que orientaram o pensamento da Igreja, suas convicções e teologia naqueles primeiros anos da era cristã.

        Para o êxito de nossa marcha, mais do que envolvimento, será necessário compromisso. Conhecer os relatos. Ler e reler as cenas. Identificar detalhes. Viver a ousadia dos discípulos, sentir as chicotadas que sofreram e as pedradas que doeram, em um exercício inigualável de compreensão e empatia.

O convite está feito e o desafio lançado. Levanta e marcha! A alegria do movimento, tenho certeza, será maior que o conforto da inércia. Você pode marchar com um propósito definido e inspirador, ou pode seguir perambulando sem compromisso, assim, como quem veio à vida a passeio.



[1] "Em marcha" é o significado atribuído a "makarios" no aramaico, uma língua semítica antiga. Essa interpretação ressalta a ideia de movimento, progresso e propósito na jornada da vida. Quando aplicado ao contexto espiritual, "makarios" sugere não apenas uma caminhada física, mas também um avanço espiritual em direção aos desígnios de Deus. Essa interpretação ressoa com a ideia de que a vida cristã não é estática, mas dinâmica, exigindo compromisso, dedicação e constante busca pela vontade divina. Assim, compreender "makarios" como "em marcha" pode servir como um lembrete poderoso da importância de uma vida de fé ativa e comprometida com os propósitos de Deus.

[2] 2 Timóteo 4:2

[3] João 3:8